Anne se foi
Anne se foi
O garoto queria uma companheira de brincadeiras. O pai queria ostentar o labrador que ela nunca foi e a mãe talvez não tenha pensado muito em suas motivações. Foram felizes por um tempo. O menino dormia sobre ela e corriam e brincavam, mas quando o divórcio veio ela também foi vítima do desamor. Ficava sozinha no quintal onde fora feliz e de tempos em tempos alguém vinha com água e comida. Minha mãe não aceitou essa injustiça e em nossa casa sempre coube mais um, a despeito das reclamações de meu pai. E ela veio. Um filhote carinhoso, grande, peludo e assustador. Podia machucar seu joelho pedindo carinho, e vivia para estar perto. Sempre lutou. Quase não sobreviveu por culpa de uns carrapatos malditos. Na volta da faculdade eu descia do ônibus e caminhava até a clínica veterinária em que ela ficou internada. Nunca vou esquecer aquela alegria contida mas firme quando ela me via, era uma séria brincalhona, e sempre me identifiquei. Sobreviveu e teve duas ninhadas lindas. Filhos do meu Lex Luthor. Estava já tão velhinha que subverteu os prazos da natureza. No fim de semana ela acordou muito bem. Andou e quase correu. Pediu para limpar os olhos já cegos como sempre fazia, nos espancando com o focinho. Comeu seu banquete no fim da tarde e horas depois não andou mais. Dormiu. Ainda roncava. Hoje não roncou mais. A crônica do cachorro que se foi é um clichê. Estou cansado de ler (sensível demais, reconheço) e as escrever, mas todos os cães merecem seu memorial.