Primavera?
A primavera começa hoje, mas estou no outono da vida. Soa dramático e trágico e um tanto melancólico, não nego. Enquanto escrevo, minha vitrola mental começa a tocar Nelson Cavaquinho ou a canção do Prévert. Acho que “trágica melancolia” é uma expressão que pode definir a vida de alguma forma, mas a dimensão do drama aparece também, principalmente quando me pego pensando uma trilha sonora, um score para o filme de minhas desventuras. E quando as memórias ganham trilha e nossas questões existenciais se transformam em texto é de drama que estamos falando, é para um outro. O outro que carregamos como expectador de nós mesmos ou um outro suposto lá fora, não importa. Escrever é atuar esse drama.
Existem muitas teorias a respeito do que nos leva a escrever, e o tema é cercado de fantasias e idealizações. Gosto especialmente das formulações que retiram o escriba de certo pedestal, afinal a escrita é o artesanato que como ofício enche de calos a alma do artesão. Há também quem veja o escritor flertando com a perversão de capturar o gozo do leitor, de fazê-lo seu objeto. Em minha passagem por instituições de saúde mental trabalhei com a escrita terapêutica, ferramenta de organização e integração egoica dos pacientes. Há o efeito terapêutico ligado ao ato de escrever e o efeito do endereçar, tão ou mais importante. Todo texto é de certa forma uma carta demandando amor. Pensando nessa escrita que é tentativa de (se) organizar, gosto de citar o James Baldwin: “um escreve de uma coisa apenas – a própria experiência. Tudo depende de quão incansavelmente se força a partir desta experiência a última gota, doce ou amarga, que pode possivelmente dar. Esta é a única preocupação real do artista, recriar a partir da desordem da vida aquela ordem que é a arte.”
Eu escrevo em busca da ordem ou, melhor dizendo, da ordenação mínima de meu fluxo obsessivo de pensamentos. Sem a escrita a cacofonia de minhas ideias me faria mudo. E eu escrevo também e principalmente por raiva. Eu sou feito de raiva. Hoje começa a primavera. Depois de algum tempo de vida acumulamos ciclos de lutos e alegrias, de tempo nublado e de Sol, de forma que todas as estações meio que convivem em nós, mas eu sou outono. Na transitoriedade melancólica da morte e na floresta queimada: minha raiva é a fagulha que a qualquer momento pode transformar tudo em cinza, pulsão destrutiva. Falava disso em análise ontem. Da raiva destruidora que consome a floresta que talvez não saiba mais se renovar a cada estação. “Mas onde há tanta pulsão destrutiva há a possibilidade de sublimar, não?” disse meu analista argentino que faz de mim o que Diego fazia da bola. “O que você pode criar a partir da raiva?”
Pensava ainda nisso enquanto caminhava para casa, e parei num boteco para comer um salgado e tomar açaí, nunca havia estado ali. O senhor que me atendeu deixou o balcão e veio se sentar à mesa com o desconhecido aqui, perguntando se eu sabia tocar um instrumento. Antes que eu pudesse responder ele botou o celular na mesa me mostrando animado um vídeo tutorial de “como fazer um sax com PVC, simples e fácil”:
Enquanto eu via o vídeo este senhor desconhecido até então foi buscar o que já tinha concluído do projeto até ali, um pedaço de cano com alguns furos. Ele estava feliz.
Essa newsletter é meu saxofone feito de PVC. Meu novo amigo provavelmente não será capaz de tocar A Love Supreme, assim como eu não ganharei nenhum prêmio literário, mas com muito pouco: um cano de PVC com furos estratégicos, um pedaço de borracha e alguns arames, ele estava criando e fazendo laço. “Você sabe tocar algum instrumento? Veja o que estou fazendo!”. Minhas palavras soltas aqui neste fluxo de livre associação têm o mesmo papel, de transformar a raiva em criação, sublimar, e de fazer laço com quem eventualmente apareça por aqui. Algo pode surgir da floresta queimada. É primavera.